terça-feira, 12 de julho de 2011

PIB: não mede prosperidade, sustentabilidade, nem qualidade de vida...


A partir de 1990, as Nações Unidas começaram a publicar seus relatórios anuais sobre o desenvolvimento humano. Desde então, amadureceu e cresceu a ideia de derrubada do conceito de PIB. Não apenas graças ao surgimento de muitos instrumentos alternativos de aferição do bem-estar e da qualidade de vida, fenômenos que nem de longe são revelados pelo PIB. Principalmente, graças à crítica do PIB como indicador sintético da própria riqueza.

A assimilação da riqueza ao PIB é equivocada, pois os métodos de mensuração sofrem de alta margem de incerteza. Comparações internacionais mostram acentuadas divergências de qualidade entre os países ricos, que vão da saúde ao turismo, passando pela alimentação, pelo transporte, e por inúmeras outras coisas. Se apenas as cifras referentes à saúde e à educação no PIB fossem cotejadas com os reais resultados em expectativa de vida e em avanços culturais, despencaria o progresso de vários países considerados de alto desenvolvimento, inclusive pelo IDH (Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU).

Mas o pior não está nessa precariedade e heterogeneidade das classificações inerentes aos cálculos de PIB, e sim em suas raízes: os fundamentos éticos da contabilidade social. Exemplo gritante são os bens militares duráveis e, sobretudo, os armamentos de destruição. Eles são tratados como investimento produtivo, ou como consumo corrente. Os técnicos de contas nacionais se defendem com argumento supostamente neutro: de que o fornecimento dessas armas deve ser entendido como prestação de serviço à defesa nacional. Todavia, é óbvio que o caráter destrutivo de operações militares não pode ser visto como um processo de produção, critério norteador das convenções da contabilidade social.

Quando um processo produtivo se baseia essencialmente na exaustão de recursos naturais, cujo caso já clássico foi o da destruição de florestas na Indonésia, o PIB registra aumentos excepcionais, pois seus fundamentos metodológicos não prevêem qualquer dedução que reflita a depreciação do capital natural. Quando um derramamento de petróleo compromete ecossistemas litorâneos, o PIB aumenta graças às despesas de reparação que gerarem transações monetizadas, mas não se altera por serviços de limpeza baseados em trabalho voluntário. Os constantes acidentes viários ajudam a aumentar o PIB na medida em que pagamentos dos consertos de veículos e de tratamentos, ou enterros, das vítimas levem à emissão de notas fiscais, ou recibos de prestação de serviços. Mas o PIB não é afetado se as carcaças dos veículos forem abandonadas, ou se a assistência aos acidentados for assumida por suas famílias. 

O trabalho das donas-de-casa também aumenta o PIB se os produtos forem vendidos, mas não o altera se a reprodução da família for beneficiada sem gerar trocas mercantis. É sobre isto, aliás, a origem da célebre tirada de Paul Samuelson: casamentos de empregados domésticos com patrões reduzem o PIB. E quando as pessoas são coagidas a trabalhar além de suas forças, como ocorreu no Brasil durante o chamado milagre econômico, o PIB aumenta mesmo que se multipliquem os acidentes de trabalho. E nem é afetado se a mortalidade infantil aumentar devido ao arrocho salarial, coisa que também aconteceu naquele período. No limite, mesmo uma tragédia como a do desaparecimento de 155 pessoas na queda de um boeing na floresta amazônica contribuirá para aumentar o PIB, pois os seguros e outras transações necessárias à recuperação dos corpos serão bem superiores aos fluxos monetários que deixarão de ser gerados pela perda do avião e de sua tripulação. 

O pior não está na precariedade das classificações inerentes aos cálculos, e sim em suas raízes, os fundamentos éticos”.

Não é de se admirar, portanto, que, em países do Sul, a adoção de severas instituições para a proteção do meio ambiente, fiscalização das condições de trabalho, respeito aos direitos humanos, e prevenção de acidentes, faça com que eles exibam menor desempenho econômico, se medido pelo PIB. Resultados bem superiores, por esse prisma, são conseguidos por homólogos envolvidos em guerras, ou que devastam seus recursos humanos e naturais. No último quarto do século passado, enquanto o PIB per capita do Brasil aumentava menos de 1% ao ano, o da Índia aumentava 3,3%, o do Líbano 3,6%, o da Indonésia 4,2%, o do Vietnã 5%, e o da China 8,2%. 

É por essa e outras razões que não poderia ter sido mais feliz o brado lançado há quase cinco anos nas páginas do jornal “Le Monde” (23/01/02) pelo economista Jean Gadrey: “A ditadura do PIB é ilegítima em todos os planos: moral, filosófico e até econômico. Está na hora de dessacralizar a assimilação da riqueza ao PIB e a do progresso ao crescimento tal como ele é medido. Temos bons argumentos (e números) para avaliar de outra maneira a qualidade de vida e as riquezas (econômicas e não econômicas) de que dispomos num país.” 

Se esse brado ainda não é tão persuasivo quanto deveria, é porque persistem inúmeras dificuldades, tanto conceituais quanto práticas, de se repensar o sentido da riqueza. E o exemplo mais ilustrativo certamente está na questão ambiental. 

Com o propósito de obter um Produto Interno Líquido (PIL), que chegou a ser chamado de “PIB verde”, muitos economistas apostaram em técnicas de precificação dos bens e serviços naturais (e também de outros intangíveis) para os quais não existem mercados. Ao avançarem nesse rumo, perceberam que estoques são muito mais significativos para a avaliação da riqueza do que os fluxos captados por cálculos de produto. Passaram, então, a procurar modos de estimar o que chamam de “poupança genuína”, ou “poupança líquida ajustada”. No entanto, até agora, não conseguiram fazer estimativas sobre a depreciação de ativos cruciais, como água potável, solo, áreas de pesca oceânicas, florestas e manguezais. Também fica de fora a atmosfera, que serve para despejo de particulados, nitrogênio e óxidos de enxofre. Pior: os preços estimados para atribuir valor monetário aos bens naturais que entraram na lista baseiam-se em premissas que ignoram a capacidade limitada de sistemas naturais se recuperarem de perturbações (a resiliência). Resultados bastante precários, portanto, como deixou claro no ano passado o relatório do Banco Mundial intitulado “Where is the wealth of Nations?”.

Fonte: Professor José Eli da Veiga

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